Do Jornal Tribuna do Norte
Yuno Silva - repórter
O choro chora a perda de Ademilde Fonseca (1921-2012), umas das maiores cantoras que o Brasil já teve. Potiguar de São Gonçalo do Amarante, Ademilde faleceu ontem à noite no Rio de Janeiro, por voltas das 23h30, em virtude de um ataque cardíaco fulminante. Ela morava na capital carioca desde o início dos anos 1940, onde formou família e construiu uma carreira que já ultrapassava as sete décadas. Ao gravar a clássica "Tico-tico no fubá", de Zequinha de Abreu e Eurico Barreiros, se tornou a primeira intérprete a colocar voz em um chorinho, gênero até então exclusivamente instrumental, e ganhou o título de "Rainha do Choro".
DivulgaçãoTítulo
de Rainha Do Choro foi concedido em 1941 pelo flautista e maestro
carioca Benedito Lacerda, com quem Ademilde interpretou Tico-Tico No
Fubá.
Com um histórico de problemas cardíacos, a cantora mantinha a saúde em dia com consultas e exames frequentes, tomava remédio para controlar obstruções nas artérias e mantinha uma rotina normal. Aos 91 anos, estava em plena atividade e tinha compromisso marcado em Natal no próximo dia 23 de abril, Dia do Choro, quando iria apresentar o show "De mãe pra filha", no qual dividiria o palco com a filha (única) Eymar Fonseca. Na programação ainda constava participação especial do cantor Rodolfo Amaral, de quem se considerava madrinha musical. Ademilde deixa duas netas e quatro bisnetos. Seu corpo foi sepultado ontem à tarde no cemitério São João Batista, zona Sul do Rio.
Lembrada pelo pioneirismo musical e seu passado de sucessos, a artista se mantinha atenta ao presente e mantinha perfil em rede social onde se apresentava da seguinte maneira: "Sou cantora, única no gênero de chorinho. Sou mãe, avó e bisa. Sou organizada, mas esqueço onde ponho minhas coisas. Gosto de casa limpa, arrumada e cheirosa. Não procuro mais os meus amigos com medo de incomoda-los. Alguns me chamam de anti-social. ( ) Agradeço a Deus por ter me dado o dom de cantar, cantando pude ajudar muitos familiares e educar minha filha."
A reportagem da TRIBUNA DO NORTE conversou por telefone com a neta de Ademilde, Anna Lúcia, 41, sobre o ocorrido. Emocionada, ela lembra que a avó estava bem e cheia de planos: "Ela estava vendo televisão e quando ia até a varanda teve o ataque cardíaco. Foi fulminante. O que me consola é vovó não ter sofrido, era tudo pra mim, como uma mãe."
Lúcia informou que, apesar do estado de saúde de Ademilde ser delicado a situação estava sob controle. "Ela era muito ativa, vivia limpando a casa, e tomava remédio controlado. Há dois anos foi diagnosticado um problema nas artérias que irrigam o coração, tinha mais de 90% delas obstruídas, mas como o corpo havia criado ramificações os médicos disseram que não havia necessidade de operação, que poderia viver assim tranquilamente", lembrou a neta.
"Era a professora de todas as gerações", diz músico
Em março do ano passado, Adenilde teve sua vida e obra contada no especial PBambas, do Canal Brasil, apresentado pelo jornalista e crítico musical Tárik de Souza. O programa teve presença da cantora potiguar Khrystal. Ela voltaria a Natal para show agora em abril.
O bandolinista Alexandre Moreira estava escalado para acompanhar Ademilde no show que ela faria em Natal em abril. Para Moreira, Ademilde foi responsável por ampliar as possibilidades do choro. "Foi a pioneira do chorinho cantado, era a professora de todas as gerações posteriores. Depois dela, muitos compositores passaram a reescrever e compor choros com letra. Ademilde está para o choro como Pelé está para o futebol", compara o músico.
Alexandre explicou que o choro tem uma extensão melódica que pede grande performance vocal, como lançar mão do falsete. "Ela fazia isso muito bem, tinha uma técnica apurada. Uma vez me falou: 'Alexandre, não é fácil cantar choro, ainda mais esse tempo todo!' Estava cansada, muito por causa da saúde, e passou a dividir os vocais com a filha Eymar."
Moreira e outros músicos de choro, como Fernando Botelho (violão de 7 cordas), Domício Damásio (violão) e Rafael Almeida (cavaquinho), estão planejando um show em homenagem à Ademilde no próximo dia 24, e "tudo indica que será no Teatro de Cultura Popular da FJA", adianta.
O músico Camilo Lemos, instrumentista da Banda Sinfônica do Município, chegou a se apresentar uma vez ao lado de Ademilde Fonseca em um show especial montado pela Banda Sinfônica. Ele considera Ademilde a "diva do choro no Brasil." Lemos explica que cantar chorinho "não pra qualquer um" e que "até hoje são poucos os cantores e cantoras de choro" capazes de acompanhar as variações instrumentais do gênero: "O choro requer uma dicção muito articulada, e antes dela praticamente as composições, apesar de terem letra, eram registradas apenas no formato instrumental tamanha a dificuldade para os intérpretes."
O produtor Marcelo Veni, idealizador do Prêmio Hangar de Música, prestou homenagem em 2005 à Era do Rádio e concedeu prêmio especial à Ademilde. "Ela colocou voz onde não existia. Realmente uma perda irreparável para a música brasileira."
Um fã dedicado
O cantor Rodolfo Amaral, fã confesso de Ademilde desde criança e espécie de porta-voz da família no RN, conheceu a "Rainha do Choro" aos 15 anos, nos anos 1990, pouco antes de começar a cantar profissionalmente. Era o elo mais forte de Ademilde com a música potiguar. "Meu mundo caiu quando recebi ligação da família às 1h20 da madrugada. Não dormi mais. Ia fazer um show com ela em abril e íamos viajar juntos de volta ao Rio de Janeiro, onde iríamos gravar alguns vídeos com depoimentos dela sobre nossa amizade, disse que poderiam ajudar e que eu poria mostrar antes dos meus shows. Não deu tempo", lamenta Amaral.
Com voz embargada, ele contou que a amizade havia se intensificado a partir de 2009. "Comecei a ir visitá-la no Rio de Janeiro, fazíamos tudo juntos: passeios, almoço, médico, tudo!" O cantor esteve pessoalmente com Ademilde pela última vez em setembro do ano passado, e após o show marcada para abril iria "passar nova temporada no Rio" para colocar em prática os projetos em comum. "Ela era minha madrinha. Sempre homenageava ela nos meus shows e ela vinha citando meu nome nos programas que vinha participando", recorda.
TÍTULOS DE NOBREZA
(João Bosco e Aldir Blanc), gravado por Ademilde Fonseca em 1975 (acervo Rádio Cabugi/Globo)
Ademilde Fonseca surgiu na música brasileira em 1942, cantando "Tico-tico no fubá" e realizando considerada impossível, pelas dificuldades de dicção que o andamento impunha. Em pouco tempo, seus chorinhos cantados foram divulgados por todo o país e a Ademilde passou a ser conhecida como "A Rainha do chorinho". A partir da década de 1950, com a decadência do gênero, seu nome foi sendo esquecido.
Em 1975, Ademilde voltou ao disco. Como maior novidade em seu repertório, apresentou "Títulos de nobreza", chorinho escrito especialmente para ela. Praticamente todas as palavras empregadas na letra são títulos de choro, alguns deles bem conhecidos como "Carinhoso" e "Brejeiro".
TICO-TICO NO FUBÁ
(Zequinha de Abreu e Eurico Barreiros), composto em 1917, gravado pela primeira vez em 1931 e interpretado por Ademilde Fonseca em 1942
Embora "Tico-tico no fubá" seja um dos choros brasileiros mais conhecidos, levou muito tempo para ser divulgado. Conta Ademilde Fonseca que, por volta de 1930, aprendeu a letra. Em 1942, já no Rio de Janeiro, a cantora espantou o produtor musical Benedito Lacerda em uma apresentação, declarando saber a letra de "Tico-tico no fubá" e interpretando-a com grande rapidez. No dia seguinte, Lacerda providenciou a gravação, a primeira feita por Ademilde.
ALTAMIRO CARRILHO, 87
(compositor e flautista)
O músico, que já gravou mais de cem discos, tem cerca de 200 canções e se apresentou em mais de quarenta países difundindo o choro brasileiro, declarou em 1975 que Ademilde Fonseca é "a intérprete mais importante da música popular brasileira. Isto por que os anos passaram e ela continua fiel ao gênero musical que abraçou e defende há mais de 20 anos. Ademilde jamais traiu a coroa que lhe foi outorgada pelo povo, a coroa "Rainha do chorinho". E eu, um dos seus maiores admiradores.
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