Yuno Silva - repórter
"Notícia boa, é notícia ruim". Essa máxima do jornalismo sensacionalista foi explorada à exaustão quando o conflito entre polícia e bandidos no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, explodiu na televisão em novembro do ano passado. O lugar é um conglomerado de favelas, reúne cerca de 200 mil pessoas na zona Norte da Cidade Maravilhosa, e pode ser encarado como uma panela de pressão prestes a explodir, mas a ocupação deste fim de semana foi artística e protagonizada pelo grupo de teatro potiguar Clowns de Shakespeare. A trupe subiu, literalmente, o morro para apresentar o premiado espetáculo "Sua Incelença, Ricardo III" sábado e domingo últimos.
rafael tellesClowns apresenta Sua Incelença, Ricardo III no Morro do Alemão-RJ, em um dos mais importantes festivais de teatro do País
O movimento, que reuniu cerca de 15 grupos de várias partes do Brasil e do mundo e atraiu um público eclético formado não só por moradores da comunidade, é parte da série de atividades inserida na segunda fase do projeto "Tempo Festival de Artes". Iniciado em 2010, o primeiro tempo do festival foi marcado por debates, ideias, palestras, pesquisas e estudos sobre conceitos que permeiam as várias vertentes do fazer teatral; o segundo foi dominado por ocupações artísticas, oficinas e apresentações de espetáculos. Dentro da programação, os potiguares ainda ministraram oficina, entre os dias 13 e 15 de setembro para 20 pessoas que servirão como agentes "multiplicadores" dentro da comunidade do Alemão."Nunca imaginei que fosse ver algo tão bonito nesse local", declarou Nívea Carvalho, 35, moradora de Nova Iguaçu, Baixada Fluminense, à reportagem publicada no jornal O Estado de S. Paulo desse sábado, que destacava a apresentação dos Clowns de Shakespeare. "Foram quatro meses de pesquisa e contato com os moradores. O Alemão é imenso. Há a ocupação pelo Exército, a situação de sítio. A harmonia só pode chegar por meio da cultura e do lazer", disse um dos diretores do festival, César Augusto.
A TRIBUNA DO NORTE conversou com o diretor dos Clonws Fernando Yamamoto sobre a experiência e qual a próxima viagem do grupo.
Fernando, como você avalia a recepção de "Sua Incelença, Ricardo III" pelo público no Complexo do Alemão, uma vez que a literatura de Shakespeare pode não ser bem compreendida?
Shakespeare é um clássico pela grandiosidade da sua obra, que sobreviveu ao tempo, mas, antes de tudo um autor popular no período elisabetano, quando o teatro acontecia nos mesmos espaços nos quais aconteciam também rinhas de animais - ou seja, o público ia da nobreza às classes mais humildes. Acredito que nunca chegamos tão próximo à ideia do teatro elisabetano como neste final de semana no Complexo do Alemão. A linguagem shakespeariana nem sempre é simples, no entanto esta relação não é exclusiva para este público; em todos os lugares por onde passamos, seja em Acari, Brasília ou aqui no Alemão, a relação do público com o espetáculo ultrapassa a necessidade de compreensão para ser apreciado.
E a oficina, qual o perfil da turma que participou e quais as impressões do grupo sobre a experiência?
A oficina aconteceu no Casarão da Cultura, que fica na área de Casinhas, ao pé do Morro das Palmeiras. Tivemos participantes de todo o Complexo - área que envolve cerca de 200 mil habitantes -, numa turma muito heterogênea: alguns iniciantes, integrantes de Ongs que atuam nas comunidades, atores, músicos. Para nós, a oficina foi fundamental para a experiência que tivemos por aqui. Apesar de termos nos apresentado num lugar incrível, foi o encontro com essas pessoas nosso maior presente. Conhecendo de perto esta realidade que conseguimos entender o que é realmente o Alemão e esse momento que vivem, o quanto o monstro pintado pela mídia não procede, e o quanto se sofre com o preconceito por morar em um lugar como esse.
O teatro brasileiro feito por grupos independentes, e sem uma grande estrela da Globo no elenco, sobrevive sem os editais públicos? Estamos vivendo um bom momento nesse sentido?
A ideia de sobrevivência é um tanto delicada, porque sobreviver, acho que sempre sobrevivemos, como aconteceu durante as gestões FHC, e como acontece em Natal desde sempre, apesar de não haver qualquer tipo de interesse público estadual ou municipal. Mas não há dúvida que os últimos oito anos favoreceram muito o trabalho dos grupos do país, que fazem, sem dúvida nenhuma, o teatro de melhor qualidade e com maior retorno para a sociedade. Atualmente vivemos um momento de perplexidade com a gestão Ana de Holanda, que parece ser de oposição, e não situação, tamanha destruição que vem fazendo com tudo o que foi construído nos últimos governos. Já no âmbito potiguar e natalense, não há nada a ser melhorado: tudo ainda está a se construir.
Qual a reação das pessoas quando reconhecem a alta qualidade artística de um grupo de teatro vindo do Nordeste? Ainda há resquícios de preconceito?
Hoje em dia, não mais. Já conseguimos atingir um patamar na cena nacional que faz as pessoas irem nos assistir por nos conhecer, por conhecer o nosso trabalho. Mas não sei se isso se dá pelo fato de não haver mais preconceito com o teatro nordestino, ou porque nós somos uma exceção de uma regra que ainda impera.
Como é o gerenciamento do Barracão em Natal? Há uma equipe que toma conta do espaço enquanto vocês viajam?
Temos um secretário que administra o grupo e o Barracão, e nos estruturamos para distribuir as atividades que prescindem da nossa presença quando estamos em Natal. É um equilíbrio delicado e complexo, e sempre flutuante, mas estamos conseguindo administrar isso.
Como os governos estadual e municipal podem contribuir para que outros grupos, não só de teatro, possam circular por outros lugares e atingir um grau elevado de excelência?
Antes de pensar em circular, é preciso desenvolver um trabalho de qualidade. Para isso, é preciso que se crie condições adequadas. Sem um espaço, equipamento, estrutura administrativa e remuneração que garanta dedicação exclusiva, não é possível se pensar em circulação. Isso até pode acontecer, mas de forma esporádica e fruto do esforço sobre-humano dos artistas, como não deve acontecer. É preciso dar atenção à manutenção dos grupos. Esse é o primeiro passo. Depois disso, tem muito caminho a se trilhar, mas não se pode pensar em festivais, por exemplo, se não se trabalha a base primeiro.
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