por Milena Azevedo Lars Von Trier faz cinema pra incomodar. Ele perturba, desconcerta, provoca náuseas do espectador. É daqueles diretores que ou se ama ou se odeia com força. |
Porém, mais do que botar o dedo na ferida, Lars Von Trier nos propõe questionamentos profundos sobre o ser e o fazer humanos, testando os preconceitos sociais, a benevolência e o egoísmo arraigados em todos nós. Foi assim com "Ondas do Destino", "Os Idiotas", "Dançando no Escuro", "Dogville", "Manderlay" e "Anticristo". E não poderia ser diferente com seu novo filme, o drama de ficção científica "Melancolia" (Melancholia - 2011).
Melancolia é o nome de um planeta que está entrando na órbita da Terra e ameaça devorá-la. O belíssimo prólogo do filme, ao som de Tristão e Isolda, de Wagner, já nos adianta o seu desfecho: os instantes finais da vida na Terra. Mas para que possamos visualizar melhor o derradeiro momento da existência, o diretor dinamarquês separa seu filme em duas partes: Justine e Claire, as duas irmãs de temperamentos opostos que tem, cada uma, seu modo de encarar os acontecimentos que irão se apresentar.
Na primeira parte, vemos o casal Justine (Kirsten Dunst) e Michael (Alexander Skarsgard, o Eric de True Blood) enfrentando o primeiro obstáculo de seus minutos iniciais de casados: uma limousine que não passa na estreita estrada campestre que leva ao castelo aonde ocorrerá a recepção dos convidados. Justine e Michael se atrasam, aborrecendo Claire (Charlotte Gainsbourg) e John (Kiefer Sutherland), irmã e cunhado de Justine, que estão bancando a festa.
A festa em si revela-se um completo desastre (referência a Festa de Família, um dos mais icônicos filmes do movimento criado pelo próprio Lars, o Dogma 95), pois a mãe de Justine (Charlotte Rampling inesquecível no papel da mulher castradora e amarga), junto com seu pai (John Hurt perfeito como o pai volátil, que se refere a todas as mulheres como “Betty”), constrangem a todos, e o chefe de Justine (Stellan Skarsgard) põe lenha na fogueira ao desafiá-la a trabalhar durante o ambiente festivo, apresentando, inclusive, um jovem cuja missão é colar nela para tirar-lhe um slogan até o fim da noite. Em meio a esse turbilhão, Justine começa a se sentir mal e se retira da festa diversas vezes, embora seu marido se mostre apaixonado, carinhoso e compreensivo. Na verdade, Justine pressente que a estrela vermelha que vira no céu, antes de entrar no castelo, está mexendo com seu estado de espírito: ela não consegue ficar alegre, por mais que disfarce.
A segunda parte do filme é focada em Claire, racional e controladora, que não entende (e verbaliza o incômodo) o jeito de ser da irmã, emotiva, impulsiva e entregue à fatalidade das coisas. Ao ser informada de que o Melancolia se aproxima da Terra, Claire pesquisa na internet a probabilidade de haver um desastre. John, seu marido, um astrônomo amador, a tranquiliza e convence-a de que esse raro espetáculo da natureza deve ser apreciado, não temido. Ela tende a acreditar em John, mas precavida como é, compra comprimidos para um possível suicídio coletivo. Quanto mais o Melancolia se aproxima, a depressão de Justine aumenta. O Melancolia suga a energia de tudo e de todos, mas Justine é a única que não tem medo da tragédia anunciada, pois a depressão faz com que ela espere sempre o pior, e a certeza de não haver futuro é revelada num diálogo franco com Claire, que por não poder controlar a situação, tende a romanceá-la através do escapismo, procurando, com o filho nos braços, o 19° buraco no campo de golfe. Cabe a Justine, de forma realista e lúdica, ao mesmo tempo (ela emula uma tenda primitiva protetora), conduzir a si, a irmã e o sobrinho a uma comunhão final com o universo.
Predomina em Melancolia a estética romântica (embora haja referências realistas, focadas em obras de pintores da Irmandade Pré-Rafaelita, como John Everett Millais, e do paisagista satírico renancentista Pieter Brüegel), reforçada pela trilha sonora wagneriana, a espontaneidade dos atores (Lars é conhecido por filmar sem ensaiar previamente com o elenco) e da câmera (a câmera no ombro, que treme e capta de perto as nuances das emoções dos personagens), e o bucolismo dos planos gerais, nos quais os atores quase se perdem das nossas vistas, exaltando a magnificência esplendorosa da natureza e a impotência humana frente a sua força.
Kirsten Dunst está incrivelmente serena e mereceu o prêmio ganho em Cannes, esse ano. O personagem dela é uma extensão do próprio Lars Von Trier, depressivo e iluminado, capaz de criar situações desconfortáveis e estonteantemente belas.
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